As Correntes da Liberdade
Capitulo II
Nyx ainda não havia despontado no céu quando Adonai se levantou, ele puxou as 3 peles de boi lanoso que eles usavam para se cobrir, tinha sido um dos maiores gastos do casal, mas hei, ninguém merece passar frio.
Adonai se levantou sem fazer barulho, debaixo das cobertas Elisa se mexia, tentando adaptar seu corpo ao espaço que agora sobrara na cama, seu esposo ficou olhando para ela respirando por alguns momentos, então tomando cuidado para não a acordar, Adonai ajeitou mais as cobertas em cima de sua esposa, deu um leve beijo em sua testa e foi se afastando da cama. Depois de ficar olhando para ela dormindo um pouco, ele se levantou, passou pela porta do quarto e já no corredor depois de 5 ou 6 passos parou ao lado da porta de seu escritório.
Ele chamava o local assim, dentro do local haviam 3 estantes que iam do chão ao teto, uma escrivaninha e uma bancada onde Adonai gostava de montar alguns móveis e objetos pessoais, quando ele estava estressado do dia ele se trancava em seu escritório e ficava lá até seu humor melhorar.
Elisa também tinha um espaço na casa coberto com livros, mas enquanto no espaço de Adonai haviam vários e vários livros de engenharia, trabalho em madeira e outros similares, os de sua esposa eram livros de canto, gramática, poesia, matemática e sociologia, e também quando ela tinha um dia ruim, ela ia para seu espaço compor, cantar, ler.
Embora fossem um casal de poucas posses, eles sempre que podiam compravam livros, não era um item muito luxuoso, era incomum que pessoas fora da corte gostassem desses assuntos, afinal o povo vive para pagar sua sobrevivência. Bom, esses dois, definitivamente não que a vida deveria ser só isso.
Adonai saiu de seu escritório carregando uma bolsa de couro, e acabou se dirigindo para o espaço onde sua mulher gostava de ficar, ele passou as mãos pelos móveis, muitos feitos por ele mesmo, apreciando cada detalhe, ficou um tempo olhando para a cadeira onde sua esposa sentava para escrever, ler, compor, quase como se quisesse fixar algo em sua memória, depois de uns longos minutos saiu de lá, quando ele saiu, um pequeno livro sem nenhum titulo em sua capa, estava indo para dentro da bolsa de Adonai.
O Espaço onde Elisa escrevia ficava na parte debaixo da casa, quase próximo a sala da lareira, Adonai atravessou o cômodo e quando viu estava em sua pequena sala/cozinha. Sim, era uma casa pequena, mas muito bem planejada.
O homem pegou um salame que estava pendurado para secar, um pedaço do bolo feito por sua esposa para comemorar a notícia da gravidez dela e também colocou dentro de sua bolsa.
Passando por uma viga mais baixa, próximo ao salame Adonai viu um pedaço de bacon pendurado, ele pegou a faca, mas então se lembrou da esposa brigando com ele por gostar demais de bacon, ela dizia que poderia fazer mal a ele.
Resoluto Adonai andou até a porta da sala, antes de voltar a peça de bacon e tirar um pedaço, afinal, ele estava indo para uma guerra pelo amor dos Deuses, quem sabe quando ele poderia voltar a comer o que gostava?
Com isso em mente Adonai pegou um lampião, abriu a porta da sala e começou a andar em direção ao galpão onde ele guardava a madeira, caramelo, o cachorro de sua esposa, que estava solto no quintal, começou a latir quando viu o homem passar.
Em sua quinquagésima tentativa de fazer amizade com o animal, Adonai tentou fazer um carinho na cabeça do cachorro e por pouco caramelo não pega alguns dedos de Adonai no processo.
- Ainda vou te transformar em linguiça se continuar com isso cachorro feio. Falou Adonai
A ameaça de Adonai não surtiu efeito, caramelo continuou seguindo o homem e rosnando para ele, aqueles dois não se entendiam, para caramelo, Adonai havia roubado o amor de sua amiga e isso era imperdoável.
Adonai abriu a porta do galpão e pendurou o lampião, depois disso ele andou até a pilha de Cedro Rosa e acariciou as tábuas:
- Aguardem, volto para transformar vocês no berço de minha criança, juro pelo amor que tenho a minha esposa.
As madeiras não responderam, afinal eram madeiras, só caramelo continuava com sua eterna mania de latir, rosnar, correr até a porta da casa e repetir o processo, Adonai teve receio que o cachorro acordasse Elisa, e como mandar o animal ficar quieto tinha o mesmo efeito de pedir para a água não ser molhada, o homem selou rapidamente Silpha e se dirigiu para a guarnição da cidade.
Ainda antes de ir, Adonai deu uma boa olhada em “seu reino”, caramelo continuava latindo insistentemente para ele, sem fazer muito mais, Adonai deu um sorriso e jogou um adeus para a casa dizendo em voz alta.
- Me aguardem, eu volto.
Da janela do segundo andar da casa Elisa deu um adeus tímido ao seu marido, fazendo uma coisa que ela não fazia a tempos, “deuses, protejam ele”.
Ela sabia que infelizmente Adonai teria uma vida assim, talvez se eles se juntassem um dinheiro e mudassem para um grande império, eles poderiam ter uma vida mais estável, pensava Elisa.
Triste ela desceu para começar as tarefas diárias, hoje ela ainda contaria para seus pais que eles seriam avós, ao contrário de seu pai, a mãe de Elisa não fora contra o casamento da filha e estava louca para ser avó. Enquanto pensava nisso descendo as escadas Elisa notou que a porta de seu escritório estava aberta.
Ela entrou e sentiu o perfume de seu esposo, abrindo um leve sorriso com o pensamento dele ali parado, foi então que algo ocorreu a Elisa, ela correu até a gaveta e abriu, seu diário não estava lá.
- Aquele...
Os latidos de caramelo exigindo atenção do lado de fora da casa trouxeram ela de volta a realidade. Se ele queria ler o que ela escreveu antes de se casar com ele que seja. Pensou Elisa, embora ainda estivesse consternada com o fato dele se esgueirar e pegar logo aquele diário do meio das coisas dela.
Após fazer uma refeição rápida, Elisa começou a se mexer para tratar dos animais, a pequena plantação que ambos mantinham servia apenas para manter a família, mas também precisava ser ampliada, ela então sentiu uma vontade imensa de comer bolo de cenoura, e sem se dar conta, ela já pensava em sua criança.
Ela abriu a casa para pegar um ar, soltou as poucas ovelhas e as duas vacas que estavam presas no estábulo e enquanto estava no processo de tirar água do poço para colocar aos animais, Elisa pensou que talvez devesse contratar alguém para ajudá-la nas tarefas que exigissem mais força quando sua gravidez ficasse mais aparente, foi quando ela tirou o balde de água da beirada do poço que ela finalmente se permitiu ter medo, o balde escorreu de seus dedos e ela se abaixou escondendo seu rosto mesmo que ninguém pudesse vê-la.
- Por favor, se alguma divindade nos céus me ouve, proteja aquele imbecil.
Enquanto Elisa chorava sua tristeza, Adonai montado em Silpha já estava chegando próximo a guarnição da cidade.
A luz do dia era só o começo de uma promessa quando o engenheiro passou pelos portões da guarnição, alguns guardas trocavam de turno, enquanto outros arrumavam carroças.
Um jovem com não mais que 16 verões apontou a lança para o homem montado que se aproximava dos portões
- Alto, quem vem lá? Falou o jovem
-Adonai, engenheiro, requisitado ontem na praça da cidade, apresentando para se juntar ao comboio que parte ao meio dia conforme instruções.
O rapaz ficou um pouco chocado, ele sabia que havia um liberto que viria lutar pelo reino, mas em geral esses eram sempre brutos, reclamavam de ter que lutar, em geral era necessários caçá-los. Alguns que eram caçados inclusive acabavam voltando a situação de escravo.
Claro era compreensível, os libertos eram vistos como peças descartáveis do exército, inclusive naquele momento um sargento organizava um grupo de mais sete soldados para ir a casa de Adonai, pois já se previa que ele não aparecesse.
O rapaz pegou as credenciais que Adonai tirou de sua bolsa, o engenheiro já havia desmontado e aguardava a inspeção do guarda do portão para se juntar a guarnição.
- Sargento Livio, por favor senhor. Chamou o guarda.
- Oque é rapaz? Temos ordens para começar a organizar a busca por alguns libertos. O sargento pegou as credenciais oferecidas pelo soldado e deu um sorriso.
- Bem ao que parece meus homens vão ter um problema a menos para procurar, evitando ter sua propriedade tomada homem?
Era uma pergunta honesta e sincera, mas não deixava de ser ofensiva em certo grau, Adonai sentiu que estava longe de conseguir ser um cidadão completo naquele reino, mas ele havia sido bem educado, anos de guerra, servidão e escravidão o ensinaram a manter a boca fechada.
- Não senhor, apenas prefiro vir com as minhas próprias pernas, já que fui convocado não tenho direto de negar a convocação.
O sargento continuou a ver os papéis de Adonai enquanto andava. – Siga-me homem.
Adonai seguiu o sujeito, enquanto ambos andavam, soldados corriam para lá e para cá organizando as coisas, não era só a questão do combate, para muitos, seria a primeira vez que eles veriam a capital de seu reino.
Enquanto andavam pelos prédios e barracas que estavam armadas improvisadas pelo pátio, indicando que haviam chegado mais soldados durante a noite que a guarnição poderia suportar, o sargento não pode deixar de evitar pensar que gostava da atitude de Adonai, não era patriótica e o sargento não era bobo para acreditar nisso, contudo, quanto mais unido uma unidade fosse, melhor seria a cadeia de comando.
Perdido em seus pensamentos o sargento não percebeu que Adonai havia parado em frente a alguns postes disciplinares, locais onde qualquer um poderia ser amarrado e punido por transgredir regras, eram quatro postes e o sangue seco neles dava sinal de que não fazia muito tempo desde a ultima vez que aqueles postes foram usados.
- Vamos homem eu não tenho o dia todo. Chamou o sargento.
Imaginando o destino dos homens que haviam sido amarrados ali, Adonai continuou seguindo o homem.
Depois de caminhar mais um pouco, eles finalmente dobraram a direita em uma barraca de cor preta com um lírio desenhado em dourado na cortina que fazia as vezes de porta da barraca, não havia como errar, alguém da família do Barão que controlava as terras em volta da capital estava ali.
Não ouve qualquer movimento dentro da barraca, mas Adonai podia jurar que seus ouvidos captaram um gemido baixo, como se alguém estivesse chorando lá dentro, quase sem forças.
Passando pelo corredor que formavam as barracas de outros pequenos nobres que haviam se juntado ao exército eles chegaram a uma mesa de madeira, atrás dessa mesa estava o mesmo homem que havia anunciado na praça a convocação.
Os olhos do arauto encontraram os olhos de Adonai e o funcionário do palácio ainda se perguntava o motivo de um engenheiro viver chafurdando na lama com pessoas comuns quando o sargento estendeu para o arauto a carta de convocação de Adonai.
- Então você é um dos engenheiros do antigo Oitavo Reino? Seu time de engenheiros deu trabalho para nossas tropas na última guerra.
O homem procurava alguma reação no rosto de Adonai, no entanto apenas um olhar bobo se mantinha na cara do engenheiro como se ele fosse o mais humilde dos humildes servos.
Sentindo-se irritado o arauto continuou suas provocações.
- Sempre ouvi que os homens do Oitavo Reino eram orgulhosos, mas pelo visto isso é uma lenda.
O intuito do arauto era um só pegar Adonai em contradição, as convocações eram oportunidades para descobrir traidores sim, mas se os traidores tivessem posses, aqueles que descobriram as traições tinham direito a 40% do que foi apreendido e não era incomum acusações falsas, contudo, Adonai era um engenheiro, que havia sido requisitado especialmente por sua Alteza Real o Duque, não era tão simples, mas se Adonai atacasse qualquer oficial, ae a coisa mudava totalmente de figura.
Adonai continuava com seu olhar servil para o homem que registrava um monte de informações em uma folha extensa de papel, foi quando Tilus, o oficial que havia entregado pessoalmente a convocação de Adonai apareceu na mesa de registro.
Tilus era um homem grande, tinha quase dois metros de altura e o físico de um guerreiro nobre, sem nenhuma cerimônia, o oficial pegou a bolsa de Adonai e virou em cima da mesa, espalhando os pertences de Adonai por todos os lados.
- Álcool? Alguma Droga? Remédios? Falava o oficial.
- Tais itens, salvo remédios prescritos pelo médico da guarnição, são itens ilegais e não devem constar nos pertences de um convocado... senhor. Adonai deu uma pausa em sua fala antes de acrescentar senhor a sua frase.
A mão do oficial se fechou e encontrou o estomago de Adonai, o engenheiro caiu de joelhos no chão cuspindo o pouco do café da manhã que ele havia tomado.
- É senhor oficial escravo, nunca se esqueça de fazer as coisas direito.
Adonai fechou os punhos enquanto levantava, a confusão chamou a atenção de algumas pessoas, na verdade a maioria do acampamento parou para ver o que acontecia, até mesmo o arauto demonstrou surpresa com a reação exagerada do oficial, Adonai, no entanto abaixou sua cabeça o máximo que pode enquanto dizia.
- Lamento senhor oficial, não esquecerei da próxima vez.
Irritado, o oficial chutou alguns pertences de Adonai que acabaram caindo da mesa e indo para o chão, os olhos de Adonai ferveram em raiva quando a bota do oficial pisou em cima de um livro sem título.
- Arauto, como punição esse homem deve registrar apenas dois bens que levará consigo.
O registro de bens era uma pratica para garantir um pouco de liberdade e sentimento de pertencimento aos libertos, na prática, se eles voltassem da guerra eles poderiam pedir todos os seus bens que deixaram registrados. Quanto menos bens deixavam você registrar, maior havia sido seu crime.
O oficial saiu pisando duro sem perceber ou se importar de pisar em mais algumas coisas no chão, Adonai se abaixou e pegou seu livro, Tilus não se importou, cada vez que ele olhava para Adonai ele se lembrava de seus homens gritando nas muralhas da capital do Oitavo Reino, e inconscientemente, Tilus levou a mão a cicatriz em seu rosto.
Até mesmo o arauto que minutos antes estava provocando Adonai perguntou se o engenheiro estava bem, afinal ele tomou um soco no estomago dado por um oficial que vestia uma manopla, Adonai simplesmente sorriu e apresentou os dois itens que iria registrar.
- Hã? Um cavalo e um livro? Não suas ferramentas?
O arauto estava confuso, o jogo de ferramentas de engenheiro de Adonai era claramente muito valioso, contudo, ele preferiu registrar um livro e um cavalo que nem estava em tão boas condições? Qual seria a razão?
Adonai apenas sorriu para o homem e confirmou suas escolhas, depois disso ele pegou seu uniforme e foi até a barraca geral onde os libertos estavam se reunindo.
As ferramentas? Ele poderia comprar outras sem dúvida, e depois se alguém as roubasse, ele estaria impedido e fazer seu trabalho e isso prejudicaria o Duque. Já seu livro e seu cavalo? Eram algo que realmente era seu e ele não queria perder.
Ainda sentindo o soco em sua barriga Adonai tomou uma decisão, ele faria o que fosse preciso para voltar para sua família, e assim começou a jornada dele como soldado dentro do reino de Sarmarat.
